sábado, 12 de dezembro de 2009

My Handicap

Michael Bierut




All of us start with youthful dreams. But sooner or later you realize that you've turned into something different than what you imagined.

I always wanted to be a designer. I learned early on that being a designer involved, among other things, affecting a manner of dress, speech and general attitude that would signal to other designers that you shared their access to the creative muses. At the same time, these same cues would enable non-designers to dimly apprehend that there was something special about you that commanded a certain level of respect and even awe.

To be honest, I was never much good at this even when I was in my twenties, and now that I'm about to cross over into my second half-century on earth, I may as well admit defeat. I'm not special. I look, talk, and act exactly like a million other middle-aged, upper-middle-class, balding, white, suburban businessmen.

But there is one difference. I don't golf.


I've come to know a little bit about demographics, customer profiling and market segmentation, and I can tell I'm supposed to care deeply about golf. As befitting my station in life, I spend a lot of time in airports, and there I'm besieged with pictures of golfers. Occasionally these images actually promote a particular golf course or golf-related product, but more commonly golf is used as a metaphor, usually for business success. The key card I was entrusted with by the Crowne Plaza Hotel on a recent layover at LAX is a good example. The photograph on it shows two men standing side by side on, I think, a putting green. One, wearing an odd apron-type-thing that I'm guessing identifies him as a caddy, examines something in his hand. The other, gripping a club, stands alertly at his side. Beneath this, some type: PHILOSOPHY work together. After a great deal of study, I noted that the first four letters of "philosophy" are bolder than the others. Could this mean something? A visit to Google ("phil+crowne+plaza") and, aha: it turns out that the guy with the club must be someone named Phil Mickelson, pro golfer and Crowne Plaza spokesman. A profoundly rich tapestry of layered codes, all intended to predispose me to the comforts of the Crowne Plaza, all completely lost on me.

Lest you get concerned, although I've never heard of Mr. Mickelson, even I know the most famous golfer in the world, Tiger Woods. If you spend any time in airports or paging through business magazines, you quickly realize that Woods is assumed to be a surefire aspirational figure for guys like me. He's everywhere. His endorsement contracts are legion, including sports-related brands like Nike, Gatorade, and Titleist, and general consumer companies like General Motors, American Express, TAG Heuer, and Gillette.

For me, the most inescapable expression of Woods's authority is the one deployed since 2003 by management consultant Accenture in their "Be A Tiger" campaign, which links photographs of the golfer in action with abstractions like Distractions, Focus, and Hindsight. "As perhaps the world's ultimate symbol of high performance, he serves as a metaphor for our commitment to helping companies become high-performance businesses," Accenture says on its website. "Informed by findings from our comprehensive study of over 500 high performers, as well as our unparalleled experience, the advertising draws upon our understanding of the world's elite companies, and our ability to channel that knowledge on behalf of our clients." The tantalizing element here is that reference to those "500 high performers," carefully selected by Accenture for their passionate commitment to both business success and Tiger Woods, an opinion-shaping elite that obviously excludes — by a long shot — me.

It's no secret that golf and business success are inextricably linked. The Wall Street Journal, itself a stronghold of golf columns, golf metaphors and golf advertising, ran a widely-reprinted story last year titled "Business Golf Changes Course." "Business golf is a collusion that has developed over the years between business people and their clients," according to the WSJ. The old model, "foursomes of cigar-chomping white males closing deals at exclusive country clubs" has given way to today's business golfers, who claim that "the sport's primary value is to get away from an office environment to network and build relationships, in the hopes of doing deals down the road."

Apparently, there is a small industry of consultants who stand at the ready to provide remedial assistance to people like me. These include a former KPMG marketing exec, Hilary Bruggen Fordwich, who "gives seminars at companies and one-on-one lessons to lobbyists and other executives on organizing golf retreats, avoiding business golf blunders and deciding when best to broach the business topic." Broaching the business topic — yikes! Indeed, every time I lose a potential project to one of the big identity consultancies, I always end up muttering the same thing: their goddamned new business team must have taken them golfing. Yes, while I'm sitting on my butt worrying about letterspacing, other people are out on the links, broaching things.

The sad thing about all this is that golf is, or should be, in my blood. My late father was a passionate golfer, playing once or twice a week at public courses in northeastern Ohio like Seneca and Briarwood. And he was good. Shooting a hole-in-one gets your name in the back of Golf Digest, and he did it not once, but twice. My brother Don is a serious golfer today.

But I'm not. A good part of my job is helping clients imagine how they could reach specific audiences most effectively. This means, too often, reducing people to stereotypes. As my father's son, being a non-golfer may be a last vestige of adolescent rebellion. Or it may be a denial that I've turned into a stereotype that I never chose. Or it may even be a way of resisting aging and, ultimately, death. No matter what, it is my handicap.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A função cultural das privadas

RUBEM ALVES

Sabedoria é deixar o sufoco das 10 mil coisas não essenciais e focalizar os olhos na única coisa que é essencial

"EM TEMPOS DIFÍCEIS , em algumas pessoas crescem asas; outras compram muletas."
Quando vivi nos EUA, me informaram de uma revista científica que só publicava palpites não comprovados ainda por meio de pesquisas. A diferença entre artigos já provados e palpites é simples. Artigos já provados enunciam conclusões, chegadas, descansos. Palpites anunciam partidas, caminhadas, canseira...
Sugestões de adesivos para colocar em carros: "Você tem direitos; procure sempre um advogado"; "Você tem avessos; procure sempre um psicanalista..."; "Sem advogado não se faz justiça..."; "Os advogados, se quiserem, podem contribuir para a realização da justiça...".
Jay W. Forrester, professor de administração do MIT, enunciou a seguinte lei das organizações: "Em situações complicadas, esforços para melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes muito piores e, ocasionalmente, calamitosas". Essa lei foi enunciada há 2.000 anos de forma mais simples e poética, que todos podem compreender: "Não se costura remendo de tecido novo em roupa podre. Porque o remendo de tecido novo rasga o tecido podre e o buraco fica maior do que antes" (Jesus).
O livro sagrado do taoísmo, o "Tao-Te-Ching", diz que estamos constantemente divididos: de um lado, a tentação de 10 mil coisas que demandam ação. Todas não essenciais. Do outro lado está uma única coisa: o essencial, raiz das 10 mil perturbações. Sabedoria é deixar o sufoco das 10 mil coisas não essenciais e focalizar os olhos na única coisa que é essencial.
"Paraíso" -jardim- é uma palavra que deriva do grego "paradeisos", que, por sua vez, vem do antigo persa "pairidaeza", que quer dizer "espaço fechado". Jardim é um espaço fechado. Por que fechado? Para ser protegido. Para que seja nosso.
Fora dos muros que fecham o jardim está o espaço selvagem, ainda não moldado pelo desejo de vida e beleza que mora nos seres humanos.
Política é a arte de criar esse espaço.
Política é a arte da jardinagem aplicada ao espaço público. Deixando de lado as 10 mil coisas a serem feitas, a missão das prefeitas e dos prefeitos é criar esse espaço necessário para que a vida e a convivência humana possam acontecer. Tudo o mais é acessório. Não ficou claro? Explico.
Mais importante que cem fechaduras é a única chave que as abre...
Já pensaram que, mais importante que as 10 mil coisas administrativas que podem ser feitas, a tarefa essencial é fazer o povo pensar? Que o essencial é educar? O Diabo sugeriu que Jesus tomasse providências práticas imediatas para resolver o problema: "Ordena que essas pedras se transformem em pães...". Jesus respondeu que o que realmente importava eram as palavras...
"Sonho que se sonha só é só um sonho. Sonho que se sonha junto é realidade." (Raul Seixas) É preciso que o espaço-jardim da cidade exista primeiro na cabeça das pessoas para se tornar realidade. É o essencial.
Escrevi, faz tempo, uma crônica com o título "A função cultural das privadas". Conversando sobre o assunto com uma amiga, tivemos uma ideia luminosa: e se as empresas passarem a colocar, na porta diante dos tronos, trechos literários curtos, para serem lidos pelos intelectuais assentados? Muitas experiências de iluminação científica surgiram em momentos de solidão meditativa.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Texto de Ayn Rand mostrando a inviabilidade de uma sociedade baseada no princípios marxistas


"De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade".Karl Marx


O trecho é longo -- é parte de Atlas Shrugged (1957; em Português: Quem é John Galt? [Editora Expressão e Cultura, 1987]), romance em que Ayn Rand conta, entre outras coisas, como uma fábrica de ponta e extremamente produtiva é destruída por idéias igualitárias. A transcrição é segundo o texto da tradução (pp. 510-517).

A maior parte do trecho é uma explicação, por parte de um ex-empregado, e dada a uma mulher que o entrevistava, de porque a fábrica faliu. Ironicamente, a fábrica se chamava Motores Século Vinte (Twentieth-Century Motors).

Trata-se de uma obra de ficção - ma non troppo. . . O livro foi recentemente votado pelos leitores, na Internet, a obra de ficção mais importante do século XX.



Bem, foi uma coisa que aconteceu na fábrica onde eu trabalhei durante vinte anos. Foi quando o velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo, votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem isso, não. A gente pensavam que queriam que a gente achasse que era bom. O plano era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e recebia conforme sua necessidade. . . .

Aprovamos o tal plano numa grande assembléia: nós éramos seis mil, todo mundo que trabalhava na fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia como plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro sabia. E quem tinha dúvida se sentia culpado e não dizia nada, porque do jeito como os herdeiros falavam, quem fosse contra era desumano e assassino de criancinha. Disseram que esse plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era isso que a gente ouvia a vida inteira dos pais, professores e pastores, em todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso é que era certo e justo? Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o que fez naquela assembléia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que aconteceu conosco depois foi merecido.

A senhora sabe, nós que trabalhamos lá na Século Vinte durante aqueles quatro anos, somos homens marcados. O que é que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto, não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão. . .

A senhora quer saber como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar água dentro de um tanque onde tem um cano no fundo puxando mais água do que entra, e cada balde que a senhora derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e quanto mais a senhor trabalha, mais exigem da senhora, e no final a senhora está despejando balde quarenta horas por semana, depois quarenta e oito, depois cinqüenta e seis, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele, para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles, durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim. . . .

De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade. . . .

Nós somos uma grande família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos [p.511] no mesmo barco. Mas não é todo mundo que passa dez horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu trabalhei tanto que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim um iate também, se eu ainda tenho capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala de visitas dele? . . .

Pois é. . . . Mas aí decidiram que ninguém tinha direito de julgar suas próprias capacidades e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Sim, senhora, tudo era votado em assembléia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E a senhora imagina o que acontecia nessas assembléias? Bastou a primeira para a gente descobrir que todo mundo tinha virado mendigo -- mendigos, esfarrapados, humilhados, todos nós, porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho, o trabalho pertencia à 'família', e ele não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha era a sua 'necessidade', e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a 'família' lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.

Assim, a coisa virou um concurso de misérias disputado por seis mil pedintes, cada um chorando mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? A senhora imagina o que aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem levava a melhor?

Mas tem mais. Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembléia. A produção da fábrica tinha caído quarenta por cento naquele primeiro semestre, e aí concluiu-se que alguém não tinha usado toda a sua 'capacidade'. Quem? Como descobrir? A 'família' decidia isso no voto, também. Escolhiam no voto quais eram os melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora extra todas as noites durante os próximos seis meses. E sem ganhar nada mais, porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a necessidade.

Será necessário explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado. Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a 'família' não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica -- ou por desleixo, porque ele não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura incompetência -- quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no domingo. Assim, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.

Havia um garoto que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para a 'família', não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com isso. Era tudo pelo ideal, dizia ele. Mas quando foi eleito um dos mais capazes e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano seguinte, é claro, não teve nenhuma idéia brilhante.

A vida inteira nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é? Nefasto? Pois deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o pior.

Não há maneira melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais [p.512] depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que não se termina de pagar.

E trabalhar para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada 'ajuda de custo para moradia e alimentação', e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de roupas no ano seguinte -- a senhora podia ou não ganhar uma 'ajuda de custo para vestimentas', dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser operadas, ou tivessem mais filhos. E se não havia dinheiro para todo mundo comprar roupas, então a senhora também ficava sem roupa nova.

Havia um homem que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no segundo ano de vigência do plano, mas a 'família' não quis dar ao homem uma 'ajuda de custo' para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos entrarem para a faculdade -- e, para isso, era preciso primeiro pagar a escola secundária dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo; brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comum entre nós.

Havia um sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antigamente, ele costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco clássico. Pois não lhe deram nenhuma 'ajuda de custo' para comprar discos -- disseram que aquilo era 'luxo pessoal'. Mas, naquela mesma assembléia, votaram a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de oito anos, feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes -- isto era uma 'necessidade médica', porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados. O velho que gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush: deu-lhe um soco que lhe quebrou todos os dentes. Todos.

A bebida, naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns mais, outros menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar discos clássicos nem caniços de pesca, mas se é para tomar um porre e esquecer, faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas? Hobbies? Não havia 'ajuda de custo de entretenimento' para ninguém. O 'entretenimento' foi a primeira coisa que eles cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer? Até mesmo a nossa 'ajuda de custo de fumo' foi racionada a ponto de só recebermos dois maços de cigarro por mês -- e isso, diziam eles, porque o dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.

Os bebês eram o único produto que havia em quantidades cada vez maiores -- porque as pessoas não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade da 'família'. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar mais folgado por uns tempos era ganhar uma 'ajuda de custo para bebês' -- ou isso ou arranjar uma doença séria.

Não demorou muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia fazer tudo certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para [p.513] pagar aquela garfada, sabendo que a comida que comia não era sua por direito, sentindo a vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, ser um pato e não um sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado sobre os ombros da 'família'. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de responsabilidade, não podia nem casar nem ter filhos, pois não podia planejar nada, prometer nada, contar com nada.

Mas os indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças, trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras grávidas, para receber uma 'ajuda de custo de doença', inventaram todas as doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas roupas, seus móveis, suas casas -- pois não era a 'família' que estava pagando? Descobriram muito mais 'necessidades' do que os outros -- desenvolveram um talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.

Deus me livre! A senhora entende? Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que punia aqueles que a observavam -- pelo fato de a observarem. Quanto mais a senhora tentava seguir essa lei, mais a senhora sofria; quanto mais a senhora a violava, mais lucrava. A sua honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos? No começo éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos competentes, orgulhávamo-nos do nosso trabalho, e éramos empregados da melhor fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores. Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida.

A questão não foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro -- e era isso que chamavam de idéia moral!

Queriam que trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar -- que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o resto da vida àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo nos daríamos o trabalho de seguir em frente? Não tínhamos como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar suas necessidades -- só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas num lugar que era meio hospital, meio curral -- um lugar onde só incentivavam a incompetência, as catástrofes, as doenças - burros de carga que só serviam às necessidades que os outros afirmavam ter.

Amor fraternal? Foi aí que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos. Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa do outro, o passeio que um dava com a família, a reforma que o outro fazia na sua casa -- tudo aquilo era tirado de nós, era pago pelas nossas privações, nossa renúncias, nossa fome.

Um começou a espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre as suas necessidades, para cortar sua 'ajuda de custo' na próxima assembléia. começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado clandestinamente um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro. Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguns saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se romperem. Não queríamos que ninguém se casasse: não queríamos mais dependentes para alimentar.

Antigamente, comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro no momento. Agora, quando nascia uma criança, ficávamos sem falar com os pais. Para nós, os bebês eram [p.514] agora o que os gafanhotos são para os fazendeiros.

Antigamente, ajudávamos quem tinha um doente na família. Agora . . . Vou contar só um caso para a senhora. Era a mãe de um homem que estava trabalhando conosco há quinze anos. Era uma senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos nós gostávamos dela, antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela idade. O médico disse que ela teria que ser hospitalizada, para fazer um tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser removida para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não, não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Ninguém comentava nada sobre o assunto. A única coisa que eu sei -- e disso nunca vou me esquecer -- é que eu, também, quando dei por mim estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos perdoe! Era essa a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido com a adoção do plano.

[p.515] E quando a gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já pregou o princípio "de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade". Era esse o segredo da coisa. De início, eu não entendia como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo poderiam fazer um erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direita -- quando bastavam cinco minutos de reflexão para eles verem o que aconteceria quando alguém tentasse pôr em prática essa idéia. Agora eu sei que eles não defendiam isso por erro. Ninguém faz um erro desse tamanho inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não têm como fazer essa idéia funcionar na prática e não têm um motivo que possa explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro motivo.

E nós também não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na primeira assembléia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos davam uma oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim, conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da inteligência daqueles que eram melhores que ele. Mas enquanto ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que iam querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano, na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso: e então, quanto mais a idéia nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.

Bem, tivemos o que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Tínhamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais [p.516] qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram agüentar muito tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo.

Antigamente, ninguém pedia demissão da Século Vinte, e a gente não conseguia se convencer de que a Século Vinte não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria, aliás com razão. Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem firma respeitável. Todas as pequenas lojas com que negociávamos começaram a sair de Starnesville depressa, e no final só restavam bares, cassinos e salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a lista de fregueses diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.

Antigamente, dizia-se que a marca da Século Vinte era tão confiável quanto a marca de quilates num lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que eles pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder sobrenatural que os manteria ricos, tal como havia enriquecido seu pai. Mas quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um motor nem dado, se ele ostentasse o selo da Século Vinte.

E no final nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm mesmo intenção de pagar. Mas Gerald Starnes, dopado por sua própria publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo que os empresários comprassem nossos motores, não porque eles fossem bons, mas porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.

Àquela altura qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina, quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no hospital? De que ela adiantaria para os passageiros de um avião, quando os motores pifassem em pleno vôo? E se eles comprassem nossos produtos não por causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto, bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital, o fabricante daquele avião?

Pois era esta a lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo o mundo. Se era este o resultado quando ela era aplicada numa única cidadezinha onde todo mundo se conhecia, a senhora pode imaginar o que aconteceria em escala mundial? A senhora pode imaginar o que aconteceria se a senhora tivesse de viver e trabalhar afetada por todos os desastres e toda a malandragem do mundo? Trabalhar -- e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, a senhora é que teria de pagar. Trabalhar -- sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo. Trabalhar -- sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade. Trabalhar -- tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que a senhora nunca vai conhecer, cujas necessidades a senhora jamais vai conhecer, cuja capacidade e preguiça e desleixo e desonestidade são coisas que a senhora jamais vai saber nem tem direito de questionar -- enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESTA lei moral que se deve aceitar? ISTO é um ideal moral?

Olhe, nós tentamos -- e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira assembléia à última, e acabou da única [p.517] maneira que podia acabar: com a falência. Na nossa última assembléia foi Ivy Starnes que tentou manter as aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia fracassado porque o resto do país não o havia aceitado, que uma única comunidade não poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era suficientemente boa para que ele desse certo.

Um rapaz -- o mesmo que fora punido por dar uma boa idéia no primeiro ano -- levantou-se, enquanto todos os outros permaneciam calados, e andou até Ivy Starnes no tablado. Não disse nada. Cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre plano e a Século Vinte.