segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Prazer vale mais do que sucesso

Se dar bem em todas as áreas, sentimental, profissional, financeira... tem sido, ao que parece, nosso maior ideal. Mas na contramão das sufocantes cobranças sociais por êxito, o filósofo francês Luc Ferry argumenta que o que dá sentido à existência é uma vida bem-vivida e não a tão almejada vida bem-sucedida

JULIANA MOTTER ILUSTRAÇÕES: ANDREA EBERT

Basta passar os olhos na seção de best sellers de qualquer livraria para se convencer de que a busca pelo sucesso se tornou prioridade absoluta na nossa vida. Repare que os títulos mais vendidos são quase sempre aqueles manuais de auto-ajuda que prometem fórmulas mágicas para se alcançar o êxito, seja ele profissional, financeiro, afetivo, sexual, etc. Quem, na fila do caixa, nunca escondeu atrás de uma revista um livrinho de como ficar milionário em uma semana? Ou folheou discretamente um título que ensina a ser o melhor chefe do mundo? Ou, ainda, adquiriu um manual de como desenvolver mais liderança, carisma, fazer amigos, conquistar pessoas? Ser bem-sucedido em todas as áreas da vida tem sido, ao que parece, nosso maior ideal. Mas até onde, afinal, essa busca frenética pelo sucesso tem dado sentido à nossa existência, mesmo quando ele é alcançado?

Especulações interessantes podem ser encontradas no livro O que é uma vida bem-sucedida? (Difel), do filósofo e educador francês Luc Ferry. Embora o título sugira mais uma obra de auto-ajuda entre tantas existentes, o livro surpreende por manter as suas idéias na seção de filosofia – leia-se no campo da reflexão – a uma distância segura do pragmatismo e da simplificação que parece ter tomado conta da sociedade em que vivemos. A obra não só está fora do coro do “você deve vencer” como mostra que o sucesso, enquanto simples performance social, está longe de dar sentido à vida ou, numa definição menos filosófica, trazer a felicidade que invariavelmente atribuímos a ele.

Muitas vezes fazemos uma grande confusão entre o que a sociedade julga conveniente e aquilo que de fato nos faz felizes. Isso explica porque atingir um determinado objetivo não é necessariamente uma garantia de realização

Além de um número expressivo de exemplares vendidos, o livro tem rendido muitas reflexões, tanto que deu origem a um curso homônimo, ministrado regularmente na Casa do Saber, em São Paulo. A proposta desses encontros filosóficos, segundo o professor de Ética da Escola de Comunicações e Artes da USP, Clóvis de Barros Filho – que foi aluno de Luc Ferry e conduz as seis aulas do programa – é refletir sobre o sentido da vida e as transformações do conceito de felicidade ao longo da história.

Performance x desejo

Pare e pense. A satisfação de conseguir aquela promoção – que custou tantas noites insones e lhe privou de encontros familiares, reuniões no colégio dos filhos e valiosos momentos de ócio – se manteve por mais de dois ou três meses? E aquele dinheiro que você sempre sonhou em ganhar e agora está lá, rendendo no banco, trouxe a paz que você jurou que ia ter quando superasse os tempos difíceis? E a plástica, as sessões militares de malhação ou o silicone que você colocou nos seios fizeram com que você se sentisse mais realizada na própria pele? É provável que a resposta franca para todas essas perguntas seja “não”. O fato é que, segundo Luc Ferry, costumamos fazer uma grande confusão entre o que a sociedade julga conveniente e aquilo que pessoalmente nos faz feliz. De certa forma, isso explica porque atingir um determinado objetivo e ser reconhecido socialmente por tal conquista não é necessariamente uma garantia de realização individual. “O mundo contemporâneo incita-nos por toda parte ao devaneio. Seu cortejo impressionante de estrelas e lantejoulas, sua cultura de servidão diante dos poderosos e seu amor desmedido pelo dinheiro tendem a nos apresentá-lo, literalmente, como um modelo de vida”, analisa o autor no livro e completa: “Tudo concorre hoje para fazer do sucesso um ideal absoluto. Esportes, artes, ciências, política, empresas, amores, tudo passa pelo sucesso, sem distinção de categoria nem de hierarquia de valor”.

Atualmente, o centro da vida não está mais no divino, mas no humano. Se isso nos faz senhores do nosso próprio destino, por outro lado abre espaço para muitas distorções, como essa de colocar o sucesso acima do bem-estar individual

Difícil ficar indiferente a essa supervalorização da performance, pois para todo o lugar que olhamos – seja o noticiário, a tevê, a reunião na empresa – nos deparamos com um modelo de sucesso a ser seguido. Mas peraí, será que lá no fundo você deseja igualar o empreendedorismo do Bill Gates? O dinheiro do Donald Trump? O corpo perfeito da Gisele Bündchen? Talvez não. Porém, sem perceber está lá, lutando de sol a sol para conquistar uma vida de glória que não corresponde nem de longe às suas expectativas íntimas.

Vida bem-sucedida?

Para que serve a nossa vida, afinal? A que ela se destina? A pergunta, já adianto, continua sem resposta – empregando filósofos e terapeutas mundo afora – mas não custa voltar no tempo para tentar entender melhor como chegamos até aqui.

Durante séculos, nossa existência foi vista no contexto de um princípio transcendente, ou seja, buscavase uma vida terrena digna que permitisse ascender a algo além da matéria. Na Antiguidade, questionar a respeito da chamada “vida boa” significava empenhar-se na busca desse princípio transcendente. “Idéias tais como aquela de uma ordem cósmica harmoniosa, no seio da qual cada ser particular deveria encontrar seu lugar correto, ou de um Deus benevolente, cujo amor orientaria a vida dos homens, fundavam conviçcões que não apenas uniam os seres entre si, mas também os incorporavam a valores e finalidades imponentes, para eles bem superiores à pura performance”, analisa Luc Ferry.

Com o enfraquecimento da idéia cristã de salvação e a desconstrução de outros mitos ao longo da história, houve uma transformação no sentido da vida, que passou a ter uma finalidade puramente prática. “Se não há mais transcendência, por que, com efeito, não cultivar a performance pela performance, o sucesso pelo sucesso, a vida bem-sucedida em vez da boa?” Na falta de uma justificativa maior para nossas vidas – como havia num passado não muito distante, em que a predestinação divina parecia ser o maior consolo da humanidade – tendemos, ao que tudo indica, a sacralizar o êxito e suas recompensas morais e materiais como uma forma concreta de salvação. Isso talvez explique porque temos tanto medo do fracasso. Seguindo essa lógica, ele seria uma espécie de anticristo, ou seja, a maior confirmação de que estamos contrariando os desígnios de uma existência que tem no sucesso sua finalidade absoluta.

Precisamos ficar bem conscientes de que essa campanha maciça a favor da performance excepcional está a serviço não da realização pessoal, mas sim da sociedade capitalista, que tem na disputa e na competição seu principal combustível

Podemos especular, portanto, que a centralidade da vida não está mais no divino, mas sim no humano. Se, por um lado, esse deslocamento nos dá uma maior liberdade e nos faz senhores do nosso próprio destino, por outro, abre espaço para uma série de distorções, como essa de colocar o sucesso acima do bem-estar individual. Luc Ferry faz a seguinte análise em seu livro: “Viver, sobreviver e ter êxito tornam- se, quando muito, sinônimos – de fato, por essa razão, a “vida boa” –, seja qual for o sentido que possamos ter-lhe atribuído no passado, deve ceder lugar à “vida bemsucedida”… ou fracassada. Por essa razão, além do fracasso absoluto, que de maneira escandalosa equivale simplesmente a uma incapacidade de adaptação ao movimento generalizado, a principal ameaça que passa a pesar na existência, sem contar aquela da finitude, reside na insignificância, na banalidade e no tédio – que tem no crescimento exponencial do fenômeno da inveja um dos seus sinais mais evidentes”.

Competição e inveja

Não é de estranhar que essa perseguição cega por uma vida bem-sucedida provoque outras tantas inversões de valores. Pensemos na inveja, citada pelo autor. Se antes ela estava na lista dos pecados capitais e era vista com péssimos olhos pela sociedade, hoje ela aparece como um reflexo natural da competição que move a sociedade globalizada. “O ciúme e a inveja, por certo, são paixões antigas como o mundo. Já na Bíblia é possível vê-los em ação, por exemplo, no ódio de Caim por seu irmão Abel. No entanto, a sociedade de competição aumenta o fenômeno em proporções até então inéditas. ‘Se eu sou igual ao meu vizinho, por que ele teria mais do que eu’?”, diz Luc Ferry, que emenda: “O êxito dos outros nos parece, por assim dizer, como a prova factual de que estamos perdendo nosso próprio percurso, sem recurso nem reparação possíveis”. Em outras palavras isso significa dizer que o sucesso do outro, na lógica competitiva, é o espelho do nosso fracasso. E repare que não raro respondemos a ele com hostilidade e desdém. “Estamos sempre buscando razões, necessariamente imorais, que explicam os êxitos, injustos e imerecidos da outra pessoa, a fim de reduzir, tanto quanto for possível, seu insuportável valor.”

Todos esses exemplos nos mostram que devemos desconfiar das motivações que nos levam a perseguir o sucesso e mais ainda dos expedientes que utilizamos para chegar a ele. A gente precisa estar consciente de que essa campanha maciça a favor da performance excepcional está a serviço não da realização pessoal, mas sim da sociedade capitalista, que tem na disputa e na competição seu principal combustível. “O desafio que se coloca a nós hoje é o de saber relativizar esse movimento, olhá-lo com um distanciamento crítico e buscar, na medida do possível, razões autênticas para a própria existência”, analisa o professor Clóvis de Barros Filho.

Carpe Diem

E como se faz isso? “Vivendo intensamente o presente, o aqui e agora”, aconselha Luc Ferry. Segundo ele, o primeiro passo para se aproximar de uma realização individual é romper com o ideal, com as fantasias de êxito que nos enchem de expectativas irreais. O que acontece é que enquanto estamos sonhando com o sucesso – com uma carreira bem-sucedida, um corpo perfeito, uma fortuna no banco – a vida passa despercebida, pois o nosso foco está lá na frente, num futuro idealizado, que ainda não existe e que pode, na maioria dos casos, não existir. O autor explica, tomando por base as teorias de Freud, que do ponto de vista psicológico, projetamos uma vida plena de realizações no esforço de tentar compensar na imaginação as limitações impostas pela realidade. “Nada é pior do que o fracasso, a não ser o êxito quando ele não nos satisfaz. Ainda se ignora o perigo de realizar as próprias fantasias: elas não são desejos verdadeiros nem anseios que abririam possibilidades reais de vida, mas produto de uma frustração essencial”, diz Luc Ferry.

Enquanto estamos sonhando com o sucesso – com uma carreira bem-sucedida, um corpo perfeito, uma fortuna no banco – a vida passa despercebida, pois o nosso foco está lá na frente, num futuro idealizado que ainda não existe

Mas a realidade é o que é, e na visão filosófica, quanto mais conscientes estivermos de seu movimento, ou seja, quanto mais situados no presente, mais satisfatórias serão as nossas experiências. “O sábio é aquele que consegue, num mesmo movimento, viver no presente e viver na serenidade. Vivendo no presente, ele se desvencilha dos medos que habitam essas duas dimensões irreais do tempo que são o passado e o futuro, porque o passado não existe mais e o futuro ainda não existe”, compara o autor. E viver no presente não significa necessariamente renunciar a uma vida bem-sucedida, ao contrário. Se a busca pelo sucesso nos faz felizes, ótimo, o que não podemos é condicionar nossa felicidade a um resultado que não sabemos se iremos obter. Vem daí, dessa projeção ingênua de êxito, grande parte da nossa insatisfação existencial. O caminho é simples, como deveria ser: a cada escolha de vida, temos de nos perguntar se a busca em si tem valido a pena. É o processo que tem que ser prazeroso, afinal, até então, não há nada além dele”, conclui Clóvis de Barros.

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